quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Ajudante da Professora

           
Imagem de Paty Zanata's
     

Este texto não quer ser acadêmico, o que para mim, doutoranda em fase de conclusão da tese, parece estranho.  O motivo deste texto não querer ser acadêmico se dá pelo mesmo motivo que muitas vezes faz com que a academia rechace a mim, aos meus textos e, mais triste ainda, aos meus irmãos e irmãs negras: intolerância.

Em 2001 quando iniciei a graduação, já passando dos 20 anos, eu andava como toda caloura, cheia de entusiasmo na UFRGS, quando uma senhora me interpelou para pedir uma informação, no entanto, ela me abordou perguntando se eu trabalhava ali. Estava marcado o racismo: uma preta no campus deveria ser trabalhadora. Vale ressaltar que eu fiz um curso normal de quatro anos e meio, em um calendário escolar que colocava o início do ano letivo em julho, num sistema estadual marcado por greve. Eu nunca fui reprovada, mas o sistema marcou minha entrada tardia na universidade.

O tempo passou, a graduação acabou e veio o Mestrado. Já mais autônoma e sabendo melhor o lugar das pretas no mundo, decidi que abordaria a educação para as relações étnico-raciais na pesquisa, afinal, eu era uma licenciada em Letras e acabava um Mestrado. Uma das pessoas da banca disse que minha dissertação era um “panfleto do movimento negro”. Isso tem duas leituras possíveis: a positiva é a de que um panfleto tem uma causa e um objetivo específico, e minha dissertação tinha isso. No entanto, um trabalho acadêmico construído por dois anos ser resumido a isso significa, no dia a dia da academia, que ele é mal elaborado. Ou seja, não era um elogio, era uma crítica. E esta crítica veio porque na academia o lugar do negro, principalmente da negra, é simplesmente ocupar um lugar decorativo (relembrando a carta da semana). Assim, eu deveria fazer minha pesquisa sobre literatura africana sem falar da importância da África para o Brasil e, principalmente, para a educação brasileira. Por que não poderia falar disto? Porque isso obrigaria a universidade olhar para si mesma e perceber que não estava tudo tão bem assim.

Avançaram os anos e estou no doutorado, fui a primeira representante discente negra do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UnB. Colegas e professores sempre elogiaram a minha prática de trabalho, pois era presente nas reuniões e nas atividades cotidianas de representação dos alunos, mas eu incomodava, porque afinal de contas a voz que confrontava os professores e representava os alunos era uma voz feminina e negra. Então, em diversos momentos fui questionada sobre se o que eu falava era a expressão do desejo dos alunos, quando discorria aos docentes. Ao falar com os colegas discentes, mais de uma vez precisei provar que levava as suas demandas e que não usava aquele espaço como um degrau de entrada na academia, ou pior ainda, que não me submeteria a levar qualquer desvario individual como uma demanda do grupo para reuniões colegiadas. Assim, eu, mulher negra, era o tempo todo confrontada neste espaço: de um lado era a negra que, mesmo discente, estava entre os doutores da literatura; de outro, era a negra que tinha que provar que não era o capacho de professores e nem boi de piranha de interesses individuais. Ao precisar tomar a fala e me posicionar, a universidade (professores e alunos) precisaram parar e ouvir uma voz negra e reconhecer a sua legitimidade.

Estou chegando ao final desta jornada acadêmica que envolve titulações, e se fosse possível retomaria aqui episódios racistas que me marcaram desde a primeira série primária quando não fui colocada em uma série mais avançada “por falta de vagas”. Entrei na escola alfabetizada, mesmo sem ter ido à pré-escola. Houve uma prova para que os alunos “adiantados” fossem colocados na segunda ou na terceira série, meus colegas (brancos e homens) que sabiam menos do que eu conseguiram vaga no segundo ano. Para mim não tinha vaga, porque a turma do segundo ano estava lotada e porque eu não acompanharia o terceiro ano, mesmo sabendo toda a tabuada e dominando as quatro operações. Fiquei triste com a notícia e lembro que eu não queria ir à escola porque não gostava das coisas que as crianças faziam, então eu recebi uma função na sala de aula: ajudante da professora. Eu ajudava os meninos e meninas a fazerem as tarefas. Eu me sentia bem fazendo isso, porque pelo menos não era eu que tinha que ficar sublinhando letra pontilhada. Meus pais questionaram, mas não tinham argumentos suficientes para sustentar sua fala e, afinal, a filha estava em posição de destaque aos sete anos.

Hoje, passados 30 anos da primeira série primária, 15 anos do início da graduação e me distanciando já dois anos da representação discente no doutorado, percebo que a academia está aberta a receber as mulheres negras. Abertura que se dá se elas estiverem caladas e dispostas a continuar sendo “ajudantes da professora”, ou seja, ocupando o papel secundário que cabe às mulheres; ou o lugar de não saber dos negros. Não permitir que a menina negra avance de série é impossibilitá-la de conhecer mais; não reconhecer a negra como estudante de graduação é negar a ela a inserção em determinado espaço social; desqualificar um texto da pesquisadora negra por ter nele um posicionamento social e político é evidenciar o racismo institucional que diz que ela só pode estar naquele lugar, se não perturbar a ordem dele; e, por fim, colocar em xeque a legitimidade da voz da mulher negra é demonstrar o quanto ainda se tem que avançar para combater o racismo cotidiano que assola as academias e exclui mulheres negras todos os dias, tornando-as apenas “ajudantes da professora”.