quarta-feira, 20 de julho de 2016

Aonde quer que tu fores irei eu





“... porque aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares, 
ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus;
Onde quer que morreres morrerei eu, e ali serei sepultada. (Rute 1:16-17).



É comum encontrarmos a epígrafe deste texto em convites de casamento, pois ela revela a promessa de uma pessoa feita a outra: estarei sempre ao seu lado. No entanto, o que poucas pessoas sabem é que este texto foi dito por uma mulher a outra mulher. Esta é uma fala de Rute a sua sogra Noemi. Apesar do texto ser revelador da fidelidade de uma mulher a outra, na cultura patriarcal, somos ensinadas a ser rivais. Não necessariamente somos inimigas, mas constantemente somos colocadas em situações de competição.

A competição estimulada e ensinada às mulheres está presente em nosso cotidiano. A relação que se estabelece entre sogras e noras, em muitas situações é de completa desarmonia, pois por motivos diversos elas disputam o amor e atenção do homem amado; o mesmo acontece em relações entre cunhadas que às vezes se odeiam e disputam não só a atenção de seus homens, mas também a atenção que os filhos e elas têm na família. Descrevo apenas do ponto de vista de relações heterossexuais, pois desconheço situação semelhante em relações homoafetivas, o que não quer dizer que essas sejam superiores ou melhores, apenas ignoro tais fatos. 

As relações conflituosas se dão também entre mulheres que possuem laços sanguíneos. Não é incomum encontrarmos irmãs disputando o amor dos pais e tentando mostrar que uma é melhor do que a outra na escola, no trato com as pessoas, no trabalho e, depois de adultas, tentando mostrar quem tem a melhor família ou mais sucesso profissional. Mães e filhas disputam muitas vezes o espaço dentro de casa, não apenas o espaço físico, mas também o espaço da vida do sujeito marido e pai ou dos sujeitos irmãos e filhos.

Em espaços de trabalho, as relações entre as mulheres não são menos conflituosas. Durante muito tempo eu disse que preferia trabalhar em um local onde tivesse mais homens do que mulheres; também repetia a máxima de que preferia a amizade dos homens à amizade das mulheres; e, não poucas vezes, disse que achava as mulheres falsas. Ainda bem que o feminismo me ajudou a desconstruir isso. Hoje compreendo que o que gera estas relações de conflito entre nós não é nossa má índole, pois as expressões que citei acima fazem com que acreditemos que o mal está dentro nós. Hoje sei que essas relações são ruins porque fomos ensinadas a tornar isso verdade e a não confiar umas nas outras. Apesar de vivenciarmos a experiência de ter sempre uma grande parceira que nos ajuda e nos cuida nas horas de apuros, repetimos os chavões e perpetuamos relações desarmoniosas o tempo inteiro, porque a sociedade patriarcal nos ensina isso.

O feminismo ensinou essa desconstrução não apenas a mim. Os movimentos feministas e as teorias feministas têm ensinado isso a muitas mulheres, de forma que hoje em dia páginas como a “Vamos juntas” incentivam a parceria entre mulheres, principalmente em situação de perigo. A “Revista Azmina” difunde ideias de feminismo e estimula a sororidade. Campanhas lançadas pelas hashtags #primeiroassedio; #meuprofessorabusador; #meuamigosecreto e outras uniram as mulheres no compartilhamento de experiências, mas também na percepção de que podem andar juntas.

As mulheres negras cada vez mais buscam alternativas de se apoiarem enquanto sujeitos femininos que sofrem com as mazelas da sociedade patriarcal, mas que também sofrem com o racismo. A mulher negra é duplamente atingida em nossa sociedade, o que faz com que crie espaço de parceria e de resistência. Assim, grupos como o “Dada Mkutano/Encontro de Irmãs” promovem encontros de mulheres negras; páginas como: “A Mulher negra e o Feminismo”, “Blogueiras Negras”, “Negra Rosa”, “Noiva Negra” e outras fazem com que as mulheres negras se vejam como parceiras na militância, na produção, na beleza e no compartilhar de momentos importantes.

Se na literatura bíblica Rute jurou fidelidade a Noemi, neste dia do amigo podemos trabalhar para desconstruir a ideia de inimizade entre nós e passar a criar laços de lealdade e parceria. Que o texto bíblico usado em convites de casamento esteja presente também em nossas homenagens as nossas amigas, irmãs, sogras, mães, cunhadas, colegas, enfim... as mulheres que fazem parte de nossa vida.

Feliz Dia da Amiga e do Amigo!



Aonde quer que tu fores irei eu




“... porque aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares, 
ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus;
Onde quer que morreres morrerei eu, e ali serei sepultada. (Rute 1:16-17).


É comum encontrarmos a epígrafe deste texto em convites de casamento, pois ela revela a promessa de uma pessoa feita a outra: estarei sempre ao seu lado. No entanto, o que poucas pessoas sabem é que este texto foi dito por uma mulher a outra mulher. Esta é uma fala de Rute a sua sogra Noemi. Apesar do texto ser revelador da fidelidade de uma mulher a outra, na cultura patriarcal, somos ensinadas a ser rivais. Não necessariamente somos inimigas, mas constantemente somos colocadas em situações de competição.

A competição estimulada e ensinada às mulheres está presente em nosso cotidiano. A relação que se estabelece entre sogras e noras, em muitas situações é de completa desarmonia, pois por motivos diversos elas disputam o amor e atenção do homem amado; o mesmo acontece em relações entre cunhadas que às vezes se odeiam e disputam não só a atenção de seus homens, mas também a atenção que os filhos e elas têm na família. Descrevo apenas do ponto de vista de relações heterossexuais, pois desconheço situação semelhante em relações homoafetivas, o que não quer dizer que essas sejam superiores ou melhores, apenas ignoro tais fatos. 

As relações conflituosas se dão também entre mulheres que possuem laços sanguíneos. Não é incomum encontrarmos irmãs disputando o amor dos pais e tentando mostrar que uma é melhor do que a outra na escola, no trato com as pessoas, no trabalho e, depois de adultas, tentando mostrar quem tem a melhor família ou mais sucesso profissional. Mães e filhas disputam muitas vezes o espaço dentro de casa, não apenas o espaço físico, mas também o espaço na vida do sujeito marido e pai ou dos sujeitos irmãos e filhos.

Em espaços de trabalho, as relações entre as mulheres não são menos conflituosas. Durante muito tempo eu disse que preferia trabalhar em um local onde tivesse mais homens do que mulheres; também repetia a máxima de que preferia a amizade dos homens à amizade das mulheres; e, não poucas vezes, disse que achava as mulheres falsas. Ainda bem que o feminismo me ajudou a desconstruir isso. Hoje compreendo que o que gera estas relações de conflito entre nós não é nossa má índole, pois as expressões que citei acima fazem com que acreditemos que o mal está dentro nós. Hoje sei que essas relações são ruins porque fomos ensinadas a tornar isso verdade e a não confiar umas nas outras. Apesar de vivenciarmos a experiência de ter sempre uma grande parceira que nos ajuda e nos cuida nas horas de apuros, repetimos os chavões e perpetuamos relações desarmoniosas o tempo inteiro, porque a sociedade patriarcal nos ensina isso.

O feminismo ensinou essa desconstrução não apenas a mim. Os movimentos feministas e as teorias feministas têm ensinado isso a muitas mulheres, de forma que hoje em dia páginas como a “Vamos juntas” incentivam a parceria entre mulheres, principalmente em situação de perigo. A “Revista Azmina” difunde ideias de feminismo e estimula a sororidade. Campanhas lançadas pelas hashtags #primeiroassedio; #meuprofessorabusador; #meuamigosecreto e outras uniram as mulheres no compartilhamento de experiências, mas também na percepção de que podem andar juntas.

As mulheres negras cada vez mais buscam alternativas de se apoiarem enquanto sujeitos femininos que sofrem com as mazelas da sociedade patriarcal, mas que também sofrem com o racismo. A mulher negra é duplamente atingida em nossa sociedade, o que faz com que crie espaço de parceria e de resistência. Assim, grupos como o “Dada Mkutano/Encontro de Irmãs” promovem encontros de mulheres negras; páginas como: “A Mulher negra e o Feminismo”, “Blogueiras Negras”, “Negra Rosa”, “Noiva Negra” e outras fazem com que as mulheres negras se vejam como parceiras na militância, na produção, na beleza e no compartilhar de momentos importantes.

Se na literatura bíblica Rute jurou fidelidade a Noemi, neste dia do amigo podemos trabalhar para desconstruir a ideia de inimizade entre nós e passar a criar laços de lealdade e parceria. Que o texto bíblico usado em convites de casamento esteja presente também em nossas homenagens as nossas amigas, irmãs, sogras, mães, cunhadas, colegas, enfim... as mulheres que fazem parte de nossa vida.

Feliz Dia da Amiga e do Amigo!



domingo, 3 de abril de 2016

Dilma, ligue para o 180 e denuncie a violência!


Em 2001 a ONU publicou um relatório sobre a saúde mental no qual aponta que um dos motivos que faz com que as mulheres tomem mais medicamentos para tratar transtornos psicológicos e psiquiátricos é a violência. Segundo o documento, a “violência contra a mulher constitui um significativo problema social e de saúde pública que afeta mulheres de todas as idades, todos os antecedentes culturais e todos os níveis de renda” (ONU, p. 14). A violência contra a mulher se caracteriza pela violação de seus direitos,  o que se dá de forma física, sexual ou mental. A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, define  que uma das formas de violência contra a mulher é “a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação” (Lei nº 11.340/07, Art. 7, II). O que vimos no editorial de dois grandes veículos de comunicação neste final de semana foi a expressão da violência cotidiana contra a mulher. Violência desferida contra a mulher que ocupa o maior cargo político deste país: a Presidenta Dilma Rousseff.
No dia 01 de abril, a Revista Isto é publicou na manchete de capa uma reportagem chamada “Uma presidente fora de si”. Somente o título do texto já é ofensivo e remete a um histórico machista de denominar as mulheres como loucas e histéricas. No texto, o semanário diz que Dilma  sofre de transtornos psicológicos e afirma que ela toma medicamentos fortes para que se acalme.  A Presidenta Dilma não é a primeira mulher a ser taxada de louca ou histérica. Todas nós, mulheres, em maior ou menor grau, já fomos vistas uma ou outra vez assim, pois este estereótipo de mulher louca, histérica ou desequilibrada mental é usado em nossa cultura machista para nos deslegitimar. Quando uma de nós grita e fala mal no trânsito é  vista como uma louca mal amada ou uma histérica de TPM, quando um homem faz isso é um cara com personalidade. Assim, ao homem são atribuídos os valores considerados positivos pela sociedade e às mulheres aqueles considerados negativos – reforça-se o binarismo: homem racional/mulher emocional, homem seguro/mulher insegura; homem ativo/mulher passiva.
O jornal A folha de São Paulo seguiu a mesma linha e neste sábado lançou um editorial que sugere que a Presidenta deve renunciar para poupar o Brasil do trauma de um impeachment, pois ela não tem mais condições de governar. O interessante é que o jornal não aponta os motivos que a impedem de governar o Brasil, apenas limita-se aos erros do seu partido e a falta de apoio do Congresso Nacional. Isto não é motivo para dizer que ela não tem condições de governar, pois qualquer pessoa no lugar dela não teria. Assim, o editorial pessoaliza a crise política do país e coloca na pessoa da presidenta o problema dizendo que ela “perdeu as condições de governar o país”. Ela não perdeu as condições, mas está sendo impedida por um congresso mesquinho e por uma mídia que explora os fatos envolvendo a corrupção de um único partido – deixando de dar visibilidade aos demais envolvidos nos crimes de corrupção. Dilma reúne as qualidades necessárias para governar, fato evidenciado pelos mais de 54 milhões de brasileiros que depositaram seu voto nela na última eleição – que a reelegeu para o mais alto posto político do Brasil.
Os dois textos citados colocam uma das mulheres mais importantes do mundo em uma situação constrangedora e se caracterizam como violência contra a mulher. Dilma deveria fazer uma ligação ao serviço disponibilizado no número 180 e denunciar os abusadores, mas seu cargo não permite que a situação se resolva desta forma. Assim, é de extrema importância que através dos meios legais disponíveis para a Presidência da República que a mulher, legitimamente eleita para este cargo, tome as providências contra aqueles que a estão violentando. Dilma já foi violentada física e sexualmente durante a ditadura, já foi vaiada e ouviu impropérios em um estádio de futebol, já teve sua morte desejada inúmeras vezes e agora é taxada de louca e incapaz. Não é a primeira mulher a passar por situações vexatórias, mas foi a primeira mulher brasileira a ser presidenta e a primeira a desfilar ao lado de outra mulher, deixando os homens de fora do carro oficial no dia da posse. Dilma não é louca ou incapaz, ela é uma mulher que com coração valente desafia intensamente o machismo que impera em nossa sociedade. Machismo que ao tentar fazê-la passar por louca e incapaz não somente quer lhe tirar o poder, mas também deseja macular a imagem da primeira mulher a presidir este país. Da mesma forma que muitas mulheres são vítimas de relações abusivas no dia-a-dia, a Presidenta Dilma também está sendo – assim, nós, mulheres, devemos nos irmanar a ela, pois se nem a maior autoridade do país está sendo poupada pelo sistema patriarcal e machista, nós também não seremos preservadas se isso ficar impune.


domingo, 13 de março de 2016

Resquícios da escravidão na foto emblemática do dia 13 de março de 2016


Viralizou no dia de hoje uma foto que apresenta uma família branca formada por pai, mãe, dois filhos e um cachorrinho - seguida pela babá negra. A família veste roupa verde e amarela em protesto contra o governo do país e a babá usa o seu uniforme de trabalho. A família fotografada é do diretor financeiro do Clube Flamengo, Claudio Pracownik, e a mulher que trabalha no domingo ainda não foi identificada. O homem se ressentiu muito com a exposição de sua família e desabafou usando as redes sociais. Ele diz em seu desabafo que a mulher trabalha apenas nos finais de semana e é uma pessoa que eles gostam muito, embora não a considerem da família. Ele ainda frisa que tem um número grande de funcionários em sua empresa (segundo O globo ele é sócio e Diretor Executivo do Brasil Plural Banco Múltiplo S.A) e mais 04 funcionários em sua casa. Assim, a foto seria uma afronta ao direito de privacidade da família dele.

Claramente estamos diante da exposição de uma família branca e da elite, caso contrário, não estariam ocupando espaço em um dos maiores jornais do país. Além disso, a foto mexe numa ferida que teima em não cicatrizar no Brasil: os resquícios da escravidão negra. Muitas pessoas estão argumentando que a profissão de babá é regulamentada e que a mulher está apenas trabalhando como os jornalistas que cobriam a manifestação. Outros dizem que é uma mulher guerreira que não aceita Bolsa Família. Há ainda quem diga que se a família não a empregasse por ser negra seria racismo, daí que não faz sentido a acusação de racismos como  o fato de a terem empregado.

O que as pessoas não conseguem entender é que a foto não é de um passeio qualquer, embora pareça que a família Pracownik não considere isto, pois leva até o cachorrinho para protestar. A foto representa um momento de ação política e a mulher que acompanha a família branca tinha apenas duas opções neste dia: acompanhar a família ou deixar o emprego – fato comprovado na fala do patrão que diz que se ela não estiver satisfeita que abandone o emprego. Isto evidencia que as mulheres negras continuam sendo tratadas como sujeitos de segunda classe. A babá não pode escolher se queria protestar ou não contra Dilma. Se ela é favorável ao atual governo, o seu direito foi ferido, pois foi obrigada a participar e ser colocada nas estatísticas de participantes de um ato que não concorda (preto para fazer número sempre serve). Se for contrária ao governo, ela teve o seu direito de manifestar-se através de suas roupas roubado por um uniforme que a coloca na posição subalterna e marca o seu lugar social de serviçal da família branca caracterizada para o protesto.

Até hoje conheci apenas uma pessoa que me disse que queria ser empregada doméstica: uma mulher branca muito curiosa. Ela me contou rindo que este desejo era porque ela queria saber o que tinha na casa das pessoas e as empregadas poderiam ver isto. Lógico que quando ela cresceu isto não se tornou realidade e hoje ela é uma mulher que trabalha em outra área. No entanto, nunca vi uma mulher negra desejar ser empregada doméstica, de forma que esta cena apresentada na semana que defenderei minha tese de doutorado me faz lembrar da minha mãe dizendo que eu devia estudar “para não ter que limpar chão de branco”, ou seja, ser empregada doméstica como a maior parte das mulheres de minha família. As mulheres negras não escolhem a profissão de empregada doméstica, elas assumem esta função porque precisam sobreviver dignamente. Muitos dirão que nos dias de hoje muitas babás possuem curso superior, pois são enfermeiras, pedagogas e etc. Nenhuma jovem negra faz curso de pedagogia ou enfermagem para se submeter à função de cuidadora de criança. Novamente estamos diante de uma função que precisa ser assumida para se viver com dignidade, pois muitas vezes estas mulheres são rechaçadas do mercado de trabalho pela cor de sua pele.

Por fim, a fala do próprio Claudio Pracownik expõe o resquício de escravidão  quando se fala de serviço doméstico: “emprego centenas de pessoas no meu trabalho e na minha casa mais 04 funcionários. Todos recebem em dia. Todos têm carteira assinada e para todos eu pago seus direitos sociais. Não faço mais do que a minha obrigação! Se todos fizessem o mesmo, nosso país poderia estar em uma situação diferente”. Ele se orgulha de ter empregados, centenas em sua empresa e mais 04 em casa – o mesmo orgulho que os senhores de escravo sentiam ao contar suas “peças” que contribuíam para a economia do café, do açúcar, enfim para o crescimento do Brasil.

A manifestação de hoje comprova que a Casa Grande não se conforma com os direitos adquiridos pelas minorias, principalmente pelas mulheres negras que hoje já podem vislumbrar outras oportunidades de vida além de serem empregadas domésticas. Apesar de não protestarem contra os avanços legais que temos em nosso regime trabalhista, ao demonstrar orgulho por pagar em dia os salários e direitos sociais, a fala do diretor financeiro do Flamengo, comprova que a  Casa Grande não se conforma com os avanços do Brasil dos últimos anos. O inconformismo é porque é muita ousadia alguém questionar o fato da empregada negra carregar os filhos do branco em um domingo de sol numa manifestação política. Também é muita ousadia negras estarem nas universidades como estudantes e não como serviçais. Mais ousadia ainda é pobre ter o que comer e até acesso a internet, que permitirá aos negros e às negras pensarem e refletirem sobre a situação vivenciada por esta mulher negra que foi exposta pela manutenção do pensamento escravagista na sociedade brasileira. 

quarta-feira, 9 de março de 2016

Extremos na representação da mulher


No final do ano passado um vídeo de uma menininha chorando porque queria um marido viralizou na internet. A mãe recebeu críticas positivas e negativas por ter filmado a criança.

Veja o vídeo:


Nesta semana, um novo vídeo com uma menina falando de homens está tomando conta da rede. Trata-se de uma menina que com um discurso eufórico abre mão de casar porque percebe que macho é preguiçoso e não faz nada.

Veja o vídeo:

Em ambos os vídeos vemos meninas em situações de stress (chorando ou falando de forma muito alterada) do lugar que os homens ocupam em suas vidas. No primeiro vídeo, a menina construiu em seu imaginário que não ter um marido a tornaria menos que os outros, daí o seu choro e inconformismo diante da situação. No segundo vídeo, a menina acredita que todos os machos são preguiçosos e faz um levantamento de todas as coisas que ela não quer fazer para macho. O ápice acontece quando ela diz que não irá casar, mas sim se vingar.

As duas meninas são lindas e os vídeos apresentam uma situação cotidiana, parecendo não terem sido planejados. As pessoas que filmaram as garotas, provavelmente, não imaginaram a repercussão que os vídeos teriam. Se o fato de filmar é bom ou ruim, não nos cabe pensar neste momento. O que nos interessa é a posição destes sujeitos femininos que demonstram ser vitimas do patriarcado ainda em idade tão tenra: uma asseverando que precisa de um homem para ser completa e a outra negando esta possibilidade e prometendo uma vingança. 

A representação do que significa ser mulher para essas meninas precisa ser problematizada, pois ser mulher não significa necessariamente ter um marido, assim como ter um marido não significa necessariamente ter que lavar cuecas de macho. Vale também pensar na representação do papel do homem na família pois parece que o homem é o que torna a mulher alguém que não fica para trás, mesmo sendo um preguiçoso. Destaque também deve ser feito para a a concepção de relação afetiva: a mulher somente cabe o casamento com um homem ou então deve ser uma vingadora.  

Não será urgente pensar  sobre a representação de mulher que estas meninas e tantas outras têm?






* Os vídeos foram reproduzidos da internet.





quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Irene Preta

Babá com o menino Eugen Keller 


Minha babá era um avião de mulher, uma mulata mineira chamada Irene que causava furor onde quer que passasse. Eu ia para a escola ouvindo os homens uivando, ganindo, gemendo, nas obras, nas ruas, enquanto ela seguia orgulhosa. Sempre associei esse fenômeno à magia da Irene. O assédio não a diminuía, pelo contrário, era um poder admirável que ela possuía e que nunca cheguei a experimentar. 
(Fernanda Torres - 2016)



Irene no Céu

Irene preta 

Irene boa 
Irene sempre de bom humor. 
Imagino Irene entrando no céu: 
- Licença, meu branco! 
E São Pedro bonachão: 
- Entra, Irene. 
Você não precisa pedir licença.
(Manuel Bandeira - 1936)

A leitura do texto de Fernanda Torres em uma coluna do Jornal a Folha de SãoPaulo me fez lembrar uma poesia de Manuel Bandeira, Irene no Céu. A minha lembrança se deve ao fato da atriz ter escrito um texto em que fala de algumas experiências vivenciadas por ela e emite juízo de valor sobre fatos do cotidiano feminino – tudo, como diria o editor alemão que não aceitou publicar o livro por ela escrito, a partir de uma perspectiva machista. Fernanda Torres neste texto apresenta-se machista, racista e preconceituosa com as classes sociais mais baixas. Ela fala de sua experiência de mulher branca e emite juízo sobre diversas situações vivenciadas pelas mulheres sem atribuir nomes ou citar casos, a exceção da história de Irene e de uma morena que ela conheceu.

O trecho em que a atriz fala de Irene diz que a mulher sentia-se orgulhosa de ouvir “os homens uivando, ganindo, gemendo, nas obras, nas ruas” quando ela passava. A descrição que temos de Irene é de uma mulher negra, muito bonita e orgulhosa, mas que Fernanda não consegue assim definir, de forma que usa a palavra mulata[1]. A definição de Irene como mulata já marca o racismo. O machismo vem em seguida quando ela assume que a mulher era assediada, mas isso não a diminuía, pelo contrário, revelava um poder que ela tinha. Fernanda não consegue entender que nesta época, provavelmente há uns 40 anos atrás, o espaço de fala e a cultura das mulheres eram completamente diferentes dos dias atuais. Tempos atrás, as mulheres nem percebiam que estavam sendo agredidas quando vivenciavam estas situações, que as incomodavam, mas que para melhor sair delas, o certo era ignorar ou fingir que gostavam. Irene parece que ignorava, pois seguia orgulhosa o seu caminho.

A outra mulher que Fernanda cita em seu texto é uma morena, cuja casa só tinha “lugar para um homem, e esse homem era ela”. Temos a descrição de um sujeito feminino, provavelmente negro, que não aceitou as imposições de um sujeito masculino e que pela cultura machista de nossa sociedade atribuiu isso ao fato de também ser homem. A visão de Fernanda Torres é tão bitolada, tão machista e tão arcaica que ela não consegue interpretar que esta mulher estava sendo feminista e buscando a sua liberdade de forma destemida, sem saber as palavras que deveria usar. Contudo, o preconceito da colunista é tão grande que ela não consegue ver além do sexo (gênero ela não entenderia), esquecendo que este sujeito tem uma história e uma cultura.

Fernanda Torres é a mulher branca que sempre teve uma preta para cuidar dela, de sua casa e de suas obrigações (dentre elas os seus filhos). É a mulher que sofreu poucos abusos na vida, pois a sua condição social a blindou de muita coisa. É a mulher que acredita que a falta de estrutura familiar atinge somente os pobres, conforme se lê no trecho escrito por ela:
Nas camadas mais desassistidas, o fim do casamento indissolúvel produziu milhares de lares sem pai, onde a avó e a mãe servem de esteio para a estrutura familiar. Na falta de creches, de escolas, do estado para ampará-las, a tarefa de criar rapazes que não repitam a violência e o abandono dos pais e meninas que deem um basta na escravidão das mães, é uma missão que beira o inatingível.
Ela não consegue ver as mulheres ricas e brancas com uma estrutura familiar desequilibrada como esta. Ela também não acredita que os homens das classes mais abastadas reproduzam o machismo, talvez daí venha sua aversão ao feminismo e àquilo que ela chama de “vitimização do discurso feminista”, pois ela não tem esta estrutura familiar e não teria um homem que a violentaria e abandonaria seus filhos (como aparece nos noticiários).

O que Fernanda não percebe é que ela foi tão ou mais vítima do que as mulheres pobres e negras são. Ela teve um livro rechaçado sob a acusação de ser machista. No entanto, mesmo que ele não fosse, ele poderia ter sido rechaçado só por ela ser mulher e latina, ou seja, ela é tão vítima do machismo como Irene e a morena. O que diferencia Fernanda das outras mulheres é a cor da sua pele e o valor da sua conta bancária, que dão a ela o poder de ter coisas que Irene nunca teria, dentre elas, o espaço no jornal. Irene só ocuparia este espaço se fosse estuprada e morta por um dos seus assediadores. Fernanda, podendo ocupar este espaço, faz mau uso dele, justificando a violência que ela, Irene e a morena sofreram. A atriz não percebe que o machismo a viola todos os dias, que o racismo acaba com Irene todos os dias, que a pobreza acaba com mulheres todos os dias, pois no mundo dela basta ser branca e rica.  Fernanda nunca chegou a experimentar o poder de Irene, assim como não experimentou e nunca experimentará a subalternidade dela, a qual é expressa até no imaginário de um poeta que a vê pedindo licença para entrar no céu. 

Fernanda precisa experimentar ou imaginar outras coisas da vida de Irene e da morena, talvez assim sinta mais empatia e consiga sentir não o companheirismo que ela tanto inveja nos homens, mas a sororidade das mulheres, que a fará se incomodar com o machismo, rever sua admiração pelo machões e se desculpar por ter falado mal de Irene que a criou, pois apenas se desculpar com as mulheres que a criticam não é suficiente.



[1] Feminino de mulato, termo de origem espanhola derivado de "mulo" (animal híbrido, resultado do cruzamento de cavalo com jumenta ou jumento com égua). As palavras "mulato" e "mulata" foram usadas de forma pejorativa para designar os filhos mestiços de mulheres negras escravizadas que coabitavam com os escravizadores brancos.


sábado, 20 de fevereiro de 2016

Professores Abusadores

Foto da Comunidade Meu Professor Abusador

Há dias  em que as pancadas da vida são terríveis. Hoje foi um deles. Iniciei meu dia com uma amiga me chamando a atenção para um vídeo em que uma doutora formada por uma renomada universidade pública brasileira retoma um triste episódio de assédio sexual,  o qual foi seguido de assédio moral, ambos ocorridos com ela na mesma instituição. Há algum tempo acompanho o caso desta pesquisadora e muito me entristeço com a forma como isso é tratado no meio acadêmico: ou se omitem ou escondem estas situações. Devido ao compartilhamento do vídeo, acabei conversando com um amigo, também acadêmico de uma renomada instituição, e ele não sabia do ocorrido com a pesquisadora de São Paulo. Este amigo é uma pessoa com militância política, logo deveria saber do episódio, mas ele desconhecia – comprovando assim o silêncio da academia quando o assédio é com mulheres.

E minha manhã não poderia acabar pior, pois passeando nas páginas do Facebook, encontrei uma comunidade chamada Meu Professor Abusador. Esta página tem pouco tempo, parece que menos de um mês. Ela foi criada por meninas de Porto Alegre (minha cidade natal) e talvez por isso o maior número de relatos seja do Rio Grande do Sul. O objetivo da página é denunciar, anonimamente, casos de assédio sofridos por mulheres. Creio que li mais de 50 pequenos relatos e me entristeci a ponto de chorar. Identifiquei escolas por onde já passei ou onde lecionam amigos, ou pior ainda, locais em que estudam filhas de pessoas que me são queridas. O mais triste de tudo foi identificar professores, colegas de profissão, que são os assediadores. Alguns dos identificados já carregam esta fama e não se faz nada, porque não tem como se fazer qualquer coisa; no entanto, outros carregam a fama de bons moços ou de homens de respeito, advindo daí o espanto, nojo, medo e vergonha de compartilhar a profissão com eles.

Na referida página há denúncias de meninas que adentram a puberdade, aquelas que temos vontade de abraçar e dizer que o mundo não é assim. Há histórias de meninas mais velhas, beirando os 18 anos, e para estas a gente sente vontade de dizer para entrar na luta, pois logo tudo irá acabar. Só que percebemos que isso seria mentira, porque há relatos de mulheres com mais de 20, 30, 40 anos que sofreram as mesmas coisas na adolescência, enquanto estavam na escola; na juventude, enquanto estavam na graduação; na vida adulta, quando estavam na pós-graduação ou em cursos de formação para adultos – o que demonstra que a luta vem de tempos e que talvez ainda se estenda por mais tempo ainda.

Dizer que o mundo é cor de rosa seria mentira, dizer que já vai passar também é, contudo, dizer que não podemos nos calar é a única solução. Hoje é preciso dizer que não podemos aceitar o assédio porque somos mulheres. Não podemos aceitar o assédio porque somos mulheres negras. Não podemos aceitar o assédio porque somos mulheres trans. Enfim, não podemos aceitar o assédio porque somos nós, seja esse nós quem ou como for. Os homens não podem continuar assediando e achando que isto está certo, pois a falta de punição passa essa ideia. As escolas, as universidades, os espaços de ensino não podem continuar permitindo e perpetuando uma cultura que subalterniza o sujeito feminino. A voz das mulheres precisa ser ouvida e aquilo que ocorre conosco não pode ser tratado como algo sem importância ou como má interpretação da situação.

É chegado o momento de agir no âmbito legal e de agir nos domínios do discurso. Não temos muitas armas, pois é nossa palavra contra a deles, em qualquer lugar. No entanto, precisamos fazer alguma coisa: conseguir testemunhas, guardar provas (conversas, mensagens, enfim), denunciar (mesmo sabendo que podem não nos ouvir), modificar a forma de educar/tratar os homens (seja o filho, o irmão, o amigo – não é bonito assediar ninguém, tampouco é demonstração de virilidade). Mas, principalmente, não devemos nos sentir culpadas e guardar isso conosco, pois a culpa e o medo nos imobilizam e permitem que esses absurdos se perpetuem nos locais que deveriam nos proteger e libertar.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Nossos cabelos, nossa ancestralidade e nossa resistência cotidiana

Imagem de https://ofpagesandstages.wordpress.com/

Em meio ao debate acalorado sobre relações raciais, recomendo e reflito sobre dois textos espetaculares:  Alisando nosso cabelo, da Bell Hooks (em inglês, aqui ou na tradução do Crioula que está perfeita), e sobre a série estadunidense que está dando o que falar: How to get away with murder, estrelada pela Viola Davis.

O episódio 13 – Mama’s here now ou Mamãe está aqui agora – é uma pancada! Nele finalmente vemos a fragilidade da aguerrida professora e advogada Annalise Keating (Viola Davis), a interação conflituosa de gerações, questões sobre o estupro de mulheres, nesse caso especificamente negras, feridas ainda não cicatrizadas entre mãe e filha, a polêmica sobre receber um nome e se autonomear, o problema de a população afrodescendente viver com doações/sobras alheias. Todos os temas interseccionados sem linearidade, tal qual trabalho nas questões de gênero e raça. A coisa toda acontece simultaneamente e uma temática influencia a outra para que o caso seja único entre Annalise e sua mãe Ophelia (Cicely Tyson).

Realmente me senti representada, não porque eu tenha uma relação conflituosa com minha mãe ou porque tenha passado pelos mesmos problemas das personagens, mas, porque, além da raça e do gênero, vi um mix de temas importantes sendo evidenciados: mães superprotetoras que parecem não proteger suas filhas; a firmeza de Ophelia nos cuidados da filha para que não desanimasse diante de um momento depressivo (a morte do marido); defeitos e qualidades de mulheres negras expostos ali, de maneira complexa; o fim de personagens mulheres negras circunscritos a alegorias, exclusivamente; o retrato de mulheres negras como seres humanos em estas contradições e acertos.

Na infância, Annalise foi estuprada pelo tio e sempre achou que sua mãe, além de saber de tudo, preferiu ignorar o acontecido, motivo pelo qual carregava consigo extrema mágoa da mãe. Por sua vez, Ophelia acreditava que a filha poderia ser a assassina do próprio marido.

E o que essa história toda tem a ver com o texto de bell hooks? Então pessoas, esse nó principal, e outros menores, se desfazem em uma cena sobre ancestralidade. A fim de descobrir a versão de sua filha sobre o assassinato do marido, Ophelia chama Annalise para: PENTEAR-LHE OS CABELOS! É isso mesmo minha gente, algo tão simples, mas que eu mulher negra que já fui criança, e tantas outras mulheres negras espalhadas por essa diáspora (como a própria bell hooks e talvez você leitora) sabemos que é um dos maiores atos de afeto entre mãe e filha negras. Bell hooks diz que neste cuidado “tínhamos um mundo no qual as imagens construídas como barreiras entre a nossa identidade e o mundo eram abandonadas momentaneamente, antes de serem reestabelecidas. Vivíamos um instante de criatividade, de mudança”.

O ato de pentear os cabelos exige todo um ritual e Ophelia, pobre e idosa, mostra parte deste rito quando faz a imponente profissional Annalise, que ali na intimidade é apenas mais uma filha, respeitar toda a sua história como mãe e mulher negra e sentar-se no chão para ser penteada. É também nesse momento de intimidade e carinho que essas mulheres compartilham as verdades mais escondidas de suas trajetórias. Ophelia fala que homens sempre pegam o que querem das mulheres e diz que viu o dia em que o tio de Annalise saiu do quarto da garota durante a madrugada, soube o que ele tinha feito com ela e que pouco tempo depois, tirou as crianças de casa e com um simples fósforo e o álcool da garrafa de bebida do tio, se livrou do homem que estuprara sua filha. Menciona, igualmente, o preço que pagou pelo ato, pois perdeu o único lugar que tinha para abrigar sua família e viveu durante muito tempo de doações da igreja, coisa que “Anna Mae” sempre detestou. Após essa declaração a personagem forte de Cicely Tyson, diz que às vezes as pessoas só fazem o que têm que fazer e termina dizendo que não julgará a filha, caso ela tenha matado Sam.

O cuidado da produção com esse momento tão caro às mulheres negras faz com que uma cena extremamente densa se torne algo de uma beleza singular. Nenhuma descrição que eu fizesse faria jus ao que se passa na tela, e o modo como a cena me tocou provavelmente será diferente do como tocará outras mulheres, o que atribuo às experiências que cada uma de nós viveu.

O processo de tornar-se mulher negra sobre o qual bell hooks discorre em seu texto, inevitavelmente se faz presente na cena; a intimidade e o afeto entre mulheres negras mostra uma prática ancestral, que resiste: resiste aos séculos, resiste ao racismo, ao capitalismo e suas práticas de embranquecimento das mulheres negras, e me parece resistir porque representa a práxis máxima do afeto entre duas mulheres negras.

Em tempos, de uma internet quase sem tolerância, nos quais xingar/falar mal de mulheres negras pelas características de seus cabelos é algo comum e naturalizado, faz-se necessário lembrar que tal atitude não ofende apenas a mulher e a sua autoestima - não é tão simples de ignorar porque não diz respeito apenas ao sujeito que nós somos; o que dói em muitas de nós é a ofensa a toda uma tradição e às memórias afetivas positivas que temos de nossas mães, nossas, avós, tias, primas, bisas, irmãs e até mesmo amigas. Ofender nossos cabelos ofende a uma história compartilhada somente entre mulheres negras, mas independente de tudo isso, e talvez até contrariando um pouco o desenvolvimento da argumentação de bell hooks (que escreveu seu texto em 1989), esses momentos de doação, de amor, de companheirismo, de criatividade e de intimidade resistem quase que silenciosamente. Eles não se renderam e nem se rendem ao mercado; e, acredito, não se rendem porque manter nossas tradições nos pequenos atos diários significa mostrar para as mulheres que amamos o quanto somos poderosas juntas.


Esse pequeno ato de resistência cotidiana entre mulheres negras vale muito mais do que enormes textos sobre sororidade, porque ele diz, para nós mesmas, que não estamos sós nesse mundo cheio de racismo, de machismo e de violência.





A autora deste texto é Adélia Mathias. Jovem mulher negra formada em Letras, doutoranda em Literatura na Universidade de Brasília e uma militante feminista e anti-racista que coloca paixão e emoção no que faz e no que escreve. 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Descolonizando nossas mentes


“A maneira como formulamos ou representamos o passado molda nossa compreensão e nossas concepções do presente” (Edward Said, 2011, p. 36). Esta é a frase que me veio à mente quando vi a  foto de uma família formada por pais brancos e filho negro que tem causado polêmica neste carnaval. O motivo de tal polêmica foi o fato dos pais se fantasiarem de Aladdin e Jasmine e o menino ser fantasiado de Abu, o macaco de Aladdin. A imagem que tem circulado nas redes sociais e manchetes de jornais é marcada por uma série de comentários de negros e brancos. Alguns defendem  os pais argumentando que eles estavam apenas brincando e o preconceito está nos olhos de quem vê – argumento de brancos que nunca sentiram o preconceito ou de negros que precisam se desalienar a partir de uma “tomada de consciência das realidades econômicas e sociais” (Fanon, 2008, p. 28). Outros apontam que foi racismo e que os pais devem ser punidos por terem feito uma exposição racista da criança, novamente há brancos e negros: os primeiros são os partidários das ações de resistência ao racismo e que reconhecem os privilégios que sempre tiveram por sua cor de pele; os segundos reconhecem-se como vitimas históricas deste sistema racista e exigem reparações. 

Entretanto, tanto o grupo de defesa dos pais, quanto o grupo de acusação não percebe que problema não é um caso isolado. A fantasia da família apenas foi chocante porque o menininho é o macaco e temos presenciado muitos negros sendo chamados de macacos nos últimos tempos: Tinga, Neymar, Aranha, Arouca, Maju, Thais Araújo, etc. O grande problema é, na verdade, a colonização das mentes, que faz com que muitos negros e brancos naturalizem o racismo de tal forma que ele passa despercebido. Se fizermos uma busca rápida na página pessoal do pai do menino que foi fantasiado de macaco, perceberemos que ele é um fã da Disney, assim como é um apaixonado pelo filho. As fotos revelam uma família em que a mãe é comparada a uma princesa da Disney e o olhar do filho é capaz de mudar a vida do pai. O problema desta família, como de boa parte das pessoas que não percebem o racismo em uma situação como esta, é a colonização das mentes, ou seja, essas pessoas estão tão tomadas pela globalização, capitalismo, e pelos ismos alienadores que não conseguem perceber o peso dos seus atos.

A gravidade da foto é a mesma que acomete crianças negras que não se vem representadas em brinquedos, programas de televisão e espaços de diversão. É a mesma que ataca o jovem negro que é assediado pela polícia, pois faz parte do grupo em atitude suspeita. É a mesma que agride a mulher negra que é vista como boa para a cama e para a cozinha, mas não para casar. Estes três exemplos mostram  situações tão naturalizadas que fazem com as bonecas negras, de mesma marca e material das bonecas brancas, custem mais barato nas lojas. Muitos ainda atravessam a rua quando avistam um grupo de meninos negros da periferia ou acham natural colocar estes meninos amarrados em postes se cometerem alguma infração. Outros fantasiam sexo com mulheres negras, mas nunca assumiriam um relacionamento com uma – basta ver os índices de mulheres negras solteiras e sozinhas. E há ainda aqueles que, de forma natural, perguntam se a negra em determinado lugar ocupa a posição serviçal: empregada doméstica em ambientes familiares, recepcionista ou copeira em outros locais de trabalho.

Enfim, a foto mostra a necessidade de mudança nos discursos e nos espaços de poder e de representação. A mudança nos discursos passa por tornar perceptível a existência do racismo, seja agindo como o goleiro Aranha, seja chamando a atenção para o absurdo da fantasia da família. A mudança nos espaços de poder se dará oportunizando a negros e a negras a ocupação de espaços historicamente destinados aos brancos: nas universidades, no serviço público ou em posições de chefia nas empresas privadas. A mudança nos parâmetros de representatividade passa por modificarmos os currículos das escolas, por exigirmos brinquedos que representem todas as crianças, por não aceitarmos negros apenas em papéis subalternos nas televisões. Enfim, brancos e negros precisam reconhecer que o racismo é mais do que uma atitude, é uma estratégia para colocar um grupo em posição subalterna a outro. Além disso, não se pode ignorar que esta estratégia tem sido bem sucedida, pois não percebemos a existência de um passado escravagista que animalizou homens e mulheres negras, de forma que ainda reproduzimos, na atualidade, práticas racistas e discriminatórias como a da foto ou de tantas outras que vemos diariamente.

Referências
FRANTZ, F. Pele Negra Mascaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

SAID, E. W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011