Imagem de Paty Zanata's |
Este texto não quer ser
acadêmico, o que para mim, doutoranda em fase de conclusão da tese, parece
estranho. O motivo deste texto não
querer ser acadêmico se dá pelo mesmo motivo que muitas vezes faz com que a
academia rechace a mim, aos meus textos e, mais triste ainda, aos meus irmãos e
irmãs negras: intolerância.
Em
2001 quando iniciei a graduação, já passando dos 20 anos, eu andava como toda
caloura, cheia de entusiasmo na UFRGS, quando uma senhora me interpelou para
pedir uma informação, no entanto, ela me abordou perguntando se eu trabalhava
ali. Estava marcado o racismo: uma preta no campus
deveria ser trabalhadora. Vale ressaltar que eu fiz um curso normal de
quatro anos e meio, em um calendário escolar que colocava o início do ano
letivo em julho, num sistema estadual marcado por greve. Eu nunca fui
reprovada, mas o sistema marcou minha entrada tardia na universidade.
O
tempo passou, a graduação acabou e veio o Mestrado. Já mais autônoma e sabendo
melhor o lugar das pretas no mundo, decidi que abordaria a educação para as
relações étnico-raciais na pesquisa, afinal, eu era uma licenciada em Letras e
acabava um Mestrado. Uma das pessoas da banca disse que minha dissertação era
um “panfleto do movimento negro”. Isso tem duas leituras possíveis: a positiva
é a de que um panfleto tem uma causa e um objetivo específico, e minha
dissertação tinha isso. No entanto, um trabalho acadêmico construído por dois
anos ser resumido a isso significa, no dia a dia da academia, que ele é mal
elaborado. Ou seja, não era um elogio, era uma crítica. E esta crítica veio
porque na academia o lugar do negro, principalmente da negra, é simplesmente
ocupar um lugar decorativo (relembrando a carta da semana). Assim, eu deveria
fazer minha pesquisa sobre literatura africana sem falar da importância da
África para o Brasil e, principalmente, para a educação brasileira. Por que não
poderia falar disto? Porque isso obrigaria a universidade olhar para si mesma e
perceber que não estava tudo tão bem assim.
Avançaram
os anos e estou no doutorado, fui a primeira representante discente negra do
Programa de Pós-Graduação em Literatura da UnB. Colegas e professores sempre
elogiaram a minha prática de trabalho, pois era presente nas reuniões e nas
atividades cotidianas de representação dos alunos, mas eu incomodava, porque
afinal de contas a voz que confrontava os professores e representava os alunos era
uma voz feminina e negra. Então, em diversos momentos fui questionada sobre se
o que eu falava era a expressão do desejo dos alunos, quando discorria aos
docentes. Ao falar com os colegas discentes, mais de uma vez precisei provar
que levava as suas demandas e que não usava aquele espaço como um degrau de
entrada na academia, ou pior ainda, que não me submeteria a levar qualquer
desvario individual como uma demanda do grupo para reuniões colegiadas. Assim,
eu, mulher negra, era o tempo todo confrontada neste espaço: de um lado era a
negra que, mesmo discente, estava entre os doutores da literatura; de outro,
era a negra que tinha que provar que não era o capacho de professores e nem boi
de piranha de interesses individuais. Ao precisar tomar a fala e me posicionar,
a universidade (professores e alunos) precisaram parar e ouvir uma voz negra e
reconhecer a sua legitimidade.
Estou
chegando ao final desta jornada acadêmica que envolve titulações, e se fosse
possível retomaria aqui episódios racistas que me marcaram desde a primeira
série primária quando não fui colocada em uma série mais avançada “por falta de
vagas”. Entrei na escola alfabetizada, mesmo sem ter ido à pré-escola. Houve
uma prova para que os alunos “adiantados” fossem colocados na segunda ou na
terceira série, meus colegas (brancos e homens) que sabiam menos do que eu
conseguiram vaga no segundo ano. Para mim não tinha vaga, porque a turma do
segundo ano estava lotada e porque eu não acompanharia o terceiro ano, mesmo
sabendo toda a tabuada e dominando as quatro operações. Fiquei triste com a
notícia e lembro que eu não queria ir à escola porque não gostava das coisas
que as crianças faziam, então eu recebi uma função na sala de aula: ajudante da
professora. Eu ajudava os meninos e meninas a fazerem as tarefas. Eu me sentia
bem fazendo isso, porque pelo menos não era eu que tinha que ficar sublinhando letra
pontilhada. Meus pais questionaram, mas não tinham argumentos suficientes para
sustentar sua fala e, afinal, a filha estava em posição de destaque aos sete
anos.
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