Babá com o menino Eugen Keller |
Minha babá era um avião de mulher, uma mulata mineira chamada Irene que causava furor onde quer que passasse. Eu ia para a escola ouvindo os homens uivando, ganindo, gemendo, nas obras, nas ruas, enquanto ela seguia orgulhosa. Sempre associei esse fenômeno à magia da Irene. O assédio não a diminuía, pelo contrário, era um poder admirável que ela possuía e que nunca cheguei a experimentar.
(Fernanda Torres - 2016)
Irene no Céu
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene.
Você não precisa pedir licença.
(Manuel Bandeira - 1936)
A
leitura do texto de Fernanda Torres em uma coluna do Jornal
a Folha de SãoPaulo me
fez lembrar uma poesia de Manuel Bandeira, Irene no Céu. A minha lembrança
se deve ao fato da atriz ter escrito um texto em que fala de algumas
experiências vivenciadas por ela e emite juízo de valor sobre fatos do
cotidiano feminino – tudo, como diria o editor alemão que não aceitou publicar
o livro por ela escrito, a partir de uma perspectiva machista. Fernanda Torres
neste texto apresenta-se machista, racista e preconceituosa com as classes
sociais mais baixas. Ela fala de sua experiência de mulher branca e emite juízo
sobre diversas situações vivenciadas pelas mulheres sem atribuir nomes ou citar
casos, a exceção da história de Irene e de uma morena que ela conheceu.
O
trecho em que a atriz fala de Irene diz que a mulher sentia-se orgulhosa de
ouvir “os homens uivando, ganindo, gemendo, nas obras, nas ruas” quando ela
passava. A descrição que temos de Irene é de uma mulher negra, muito bonita e
orgulhosa, mas que Fernanda não consegue assim definir, de forma que usa a
palavra mulata[1]. A definição de Irene como mulata já
marca o racismo. O machismo vem em seguida quando ela assume que a mulher era
assediada, mas isso não a diminuía, pelo contrário, revelava um poder que ela
tinha. Fernanda não consegue entender que nesta época, provavelmente há uns 40
anos atrás, o espaço de fala e a cultura das mulheres eram completamente
diferentes dos dias atuais. Tempos atrás, as mulheres nem percebiam que estavam
sendo agredidas quando vivenciavam estas situações, que as incomodavam, mas que
para melhor sair delas, o certo era ignorar ou fingir que gostavam. Irene parece
que ignorava, pois seguia orgulhosa o seu caminho.
A
outra mulher que Fernanda cita em seu texto é uma morena, cuja casa só tinha
“lugar para um homem, e esse homem era ela”. Temos a descrição de um sujeito
feminino, provavelmente negro, que não aceitou as imposições de um sujeito
masculino e que pela cultura machista de nossa sociedade atribuiu isso ao fato
de também ser homem. A visão de Fernanda Torres é tão bitolada, tão machista e
tão arcaica que ela não consegue interpretar que esta mulher estava sendo
feminista e buscando a sua liberdade de forma destemida, sem saber as palavras
que deveria usar. Contudo, o preconceito da colunista é tão grande que ela não
consegue ver além do sexo (gênero ela não entenderia), esquecendo que este
sujeito tem uma história e uma cultura.
Fernanda
Torres é a mulher branca que sempre teve uma preta para cuidar dela, de sua
casa e de suas obrigações (dentre elas os seus filhos). É a mulher que sofreu
poucos abusos na vida, pois a sua condição social a blindou de muita coisa. É a
mulher que acredita que a falta de estrutura familiar atinge somente os pobres,
conforme se lê no trecho escrito por ela:
Nas camadas mais desassistidas, o fim do casamento indissolúvel produziu milhares de lares sem pai, onde a avó e a mãe servem de esteio para a estrutura familiar. Na falta de creches, de escolas, do estado para ampará-las, a tarefa de criar rapazes que não repitam a violência e o abandono dos pais e meninas que deem um basta na escravidão das mães, é uma missão que beira o inatingível.
Ela
não consegue ver as mulheres ricas e brancas com uma estrutura familiar
desequilibrada como esta. Ela também não acredita que os homens das classes
mais abastadas reproduzam o machismo, talvez daí venha sua aversão ao feminismo
e àquilo que ela chama de “vitimização do discurso feminista”, pois ela não tem
esta estrutura familiar e não teria um homem que a violentaria e abandonaria
seus filhos (como aparece nos noticiários).
O
que Fernanda não percebe é que ela foi tão ou mais vítima do que as mulheres
pobres e negras são. Ela teve um livro rechaçado sob a acusação de ser
machista. No entanto, mesmo que ele não fosse, ele poderia ter sido rechaçado
só por ela ser mulher e latina, ou seja, ela é tão vítima do machismo como
Irene e a morena. O que diferencia Fernanda das outras mulheres é a cor da sua
pele e o valor da sua conta bancária, que dão a ela o poder de ter coisas que
Irene nunca teria, dentre elas, o espaço no jornal. Irene só ocuparia este
espaço se fosse estuprada e morta por um dos seus assediadores. Fernanda,
podendo ocupar este espaço, faz mau uso dele, justificando a violência que ela,
Irene e a morena sofreram. A atriz não percebe que o machismo a viola todos os dias,
que o racismo acaba com Irene todos os dias, que a pobreza acaba com mulheres
todos os dias, pois no mundo dela basta ser branca e rica. Fernanda nunca
chegou a experimentar o poder de Irene, assim como não experimentou e nunca
experimentará a subalternidade dela, a qual é expressa até no imaginário de um
poeta que a vê pedindo licença para entrar no céu.
Fernanda precisa
experimentar ou imaginar outras coisas da vida de Irene e da morena, talvez
assim sinta mais empatia e consiga sentir não o companheirismo que ela tanto
inveja nos homens, mas a sororidade das mulheres, que a fará se incomodar com o
machismo, rever sua admiração pelo machões e se desculpar por ter falado mal de
Irene que a criou, pois apenas se desculpar com
as mulheres que a criticam não é suficiente.
[1] Feminino
de mulato, termo de origem espanhola derivado de "mulo"
(animal híbrido, resultado do cruzamento de cavalo com jumenta ou jumento
com égua). As palavras "mulato" e "mulata" foram
usadas de forma pejorativa para designar os filhos mestiços de mulheres
negras escravizadas que coabitavam com os escravizadores brancos.
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